Homens de letras, mulheres de papel: a delicada relação entre escritores e leitoras no Brasil do século XIX

Selma Vital
11 min readMay 9, 2022
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#ARQUIVO Ensaio escrito e publicado há mais de dez anos encontrado por um acaso e compartilhado de propósito. Uma breve reflexão com dados curiosos sobre mulheres que liam e homens que escreviam.

Se você abrir um livro escrito no Brasil do século XIX, chances há de que vá se deparar com uma história que gira em torno de uma dama. A dama em questão pode ser uma protagonista indígena como Iracema, “a virgem dos lábios de mel”, criação do escritor romântico José de Alencar[1]. Pode ainda ser uma mocinha graciosa, calçando luvas de renda, sob uma sombrinha tão graciosa como a moça. Seu nome? Carolina, também conhecida como “A Moreninha”, personagem-título de outro romance, este de autoria de Joaquim Manuel de Macedo[2].

Essas são apenas algumas entre as muitas personagens femininas que povoaram a imaginação de escritores e de leitoras brasileiras oitocentistas. Sim, você leu corretamente, e como sempre vale a pena observar o gênero dos artigos: os escritores e as leitoras. No comando da escrita dos romances estava uma maioria de homens, mas, geralmente, o público alvo dos cavalheiros romancistas era representado pelo chamado “sexo frágil”, as mulheres.

Este ensaio convida você, leitor ou leitora, para viajar um pouco no tempo e aprender mais sobre essas mulheres que no século XIX podiam ler no Brasil. Essa “habilidade” tão comum hoje em dia, em sua realidade, era no entanto um privilégio de poucas brasileiras naquela época. Mulheres leitoras eram raras, raríssimas. Para que você tenha uma ideia, de acordo com o recenseamento de 1872, apenas 13,43% da população feminina brasileira (excluindo escravas) podia ler e escrever (Chalhoub 282). E somente uma pequena parte desse grupo já tão seleto, formado por jovens de classes sociais privilegiadas, frequentava uma instituição de ensino formal. Afinal, escolas eram praticamente inexistentes fora do Rio de Janeiro e de outras poucas cidades e, entre essas instituições, aquelas dedicadas às meninas eram ainda mais escassas[3].

O conteúdo escolar, por sua vez, não era menos limitado. Além de francês e, mais raramente, inglês e alemão, o currículo oferecido às meninas das classes sociais altas e algumas de classe média era sucinto: normas de comportamento social, etiqueta e a arte de entreter convidados. Da menina bem educada esperava-se que soubesse cantar, tocar piano, recitar poesia, desenhar , pintar, assim como dominar os trabalhos de agulha e bordado (Costa 252).

Em 1869, uma escola no Rio de Janeiro tentou ampliar este currículo, mas não sem antes assegurar aos pais mais preocupados que isto não significava promover a emancipação das mulheres[4]. Todo esse cuidado não salvou o empreendimento do fracasso. A escola fechou suas portas pouco tempo depois. Mais tarde, em 1876, a escola dirigida por Rangel Pestana e sua mulher Damiana Quirina, em São Paulo, não teve melhor sorte. O colégio propunha um total de seis anos para a educação feminina secundária, com currículo ambicioso inspirado nas experiências de ensino americanas, suíças e alemãs. Dois anos depois, premidos por dificuldades financeiras, os diretores resolveram recuar na proposta inovadora e adaptar-se à realidade local. Nem mesmo esta estratégia evitaria a venda da escola naquele mesmo ano a Anna Shrader, que por sua vez tornou ainda mais modestas as propostas de ensino da instituição (Haidar 239–241).

Mas quando falamos de escolas para meninas no cenário acanhado do Brasil oitocentista, não se pode deixar de mencionar o Colégio Augusto, fundado em 1838 e dirigido por Nísia Floresta, reconhecida feminista e intelectual brasileira. O colégio tornou-se famoso por sua ênfase no ensino de línguas. E, por alguma razão, essa particularidade irritava alguns senhores , como se pode observar em um curioso editorial do jornal O Mercantil, de 1847, que criticava o exame de línguas a que as alunas do colégio eram submetidas: “Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos”, bradava o editorial.

Parece no mínimo contraditório, que, em face de realidade tão desanimadora, as mulheres continuassem sendo não só a matéria-prima dos romances brasileiros, mas o público leitor alvo dos escritores. Até o aclamado escritor Machado de Assis, em alguns de seus textos, se dirige diretamente à leitora, no feminino. E, mais, alguns de seus melhores contos foram publicados no Jornal das Famílias, cujo subtítulo avisava: “Dedicado aos interesses da mulher”.

Embora não tenha sido sempre o caso de Machado de Assis, outros escritores brasileiros, prefigurando uma leitora principiante, pouco acostumada a temas mais complexos, teriam presumivelmente adaptado os conteúdos de seus trabalhos para facilitar sua compreensão. Se essa prática de “simplificar” o conteúdo de um texto, de um filme, de uma canção ou de uma peça de teatro parece prevalecer até hoje, fazia bastante sentido naquele momento, em que ninguém podia se dar ao luxo de espantar uma leitora em potencial.

Lúcia Miguel Pereira, uma crítica literária das primeiras décadas do século XX, escreveu certa vez que “de todos os prazeres proporcionados pela leitura, o maior, o mais penetrante, é a compreensão fácil e pronta do assunto[…]/ Compreendendo logo à primeira vista, o leitor se sente inteligente, fica contente consigo mesmo[e] atribui à sua capacidade de percepção o que vem da clareza do autor” (17). Pode ser que a crítica estivesse certa, mas além da escolha da linguagem, de acordo com Antonio Candido, outro influente crítico literário brasileiro, a opção por mulheres e “estudantes” como personagens mais comuns dos romances seria uma estratégia deliberada para incluir os leitores/consumidores regulares desse tipo de literatura (Candido 85). Quer dizer, já antecipando que os potenciais leitores seriam mulheres e jovens estudantes, o escritor trataria de incluir as duas categorias como personagens e assim os leitores poderiam se reconhecer neles e, em alguns casos, sofrer ou torcer por eles.

As “estratégias de marketing” num mercado editorial tão incipiente porém, não explicam tudo. Há teorias sobre as relações entre escritores e seus letiores que vão mais longe. Por exemplo, o chamado “leitor empírico”, uma espécie de destinatário virtual de toda criação literária, é introjetado na obra que a ele se dirige (Lajolo e Zilberman, 17:1996). Isso significa que o escritor inclui no texto o perfil que ele deseja, ou acredita, que o leitor tenha. Um outro teórico, Gerald Prince, criou até mesmo um sistema de categorização do leitor: 1) o leitor real , aquele que tem o livro nas mãos; 2) o leitor virtual , para quem o autor pensa que está escrevendo; e 3) o leitor ideal , aquele ou aquela que entende o texto perfeitamente e aprova cada uma de suas nuances. (citado em Thompkins xii).

Há uma intensa dialética entre significação e texto, tanto da parte do autor quanto da parte dos leitores”(Ribeiro 38). Portanto, é difícil deduzir de que forma escritores românticos e realistas do fin de siécle brasileiro vislumbravam suas eventuais leitoras e qual era o seu conhecimento ou não das práticas de leitura das mulheres. Mas podemos inferir as implicações das ideias e do perfil que os escritores, quase todos homens, traçavam para suas leitoras por meio de seus personagens e argumento. E pelo contexto histórico resumido ao início deste artigo, é justo acreditar que ao criar determinadas personagens e atitudes femininas eles fizeram bem mais do que agradar as poucas donzelas e senhoras capazes de decifrar seus escritos.

Um falso espelho

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Antes de prosseguirmos com essa discussão, é importante lembrar que Literatura (com L maiúsculo), uma forma de criação artística, não é simplesmente o reflexo da realidade. Sabemos, claro, que um trabalho literário, como uma obra de arte ou uma peça musical, pode dizer muito sobre um período histórico. Não podemos, porém, nos esquecer que, por mais fiel que seja, a arte será sempre uma representação da realidade, a qual, antes de ser consumida por seu público, passou pelo filtro ideológico e emocional do artista, seu criador.

Assim, ao apresentar uma sinhazinha, uma escrava, uma senhora casada, todas figuras comuns da literatura de então no Brasil, o autor não necessariamente descrevia a realidade dessas mulheres, mas aquela que ele acreditava ser a verdadeira ou, muitas vezes, aquela que ele desejava que fosse verdadeira. Criar e manipular informações, particularmente no período abordado aqui, fazia parte de uma certa agenda. Note que no fim do século XIX o Brasil tentava se firmar como uma nação viável aos olhos dos países europeus.

Nesse sentido, muitos escritores consideravam quase uma obrigação cívica “inventar” uma imagem de nação que se encaixasse bem nos modelos e valores propostos. Isso acontecia sobretudo no que dizia respeito à etnicidade do brasileiro, por exemplo. Para muitos teóricos do fim do século, com o objetivo de deixar para trás nossa imagem de atraso e subalternidade, era preciso que os brasileiros fossem aceitos dentro da ordem mundial vigente. Era como se quiséssemos fazer parte de um clube de elite e, envergonhados de nosso passado escravista e de nossa mistura étnica, alguns pensadores pregavam que o Brasil evoluiria para a gradual, e total, dissolução do “sangue negro” que seria sobrepujado pela prevalência do “sangue europeu”. Esse sentimento se tornou quase uma regra, ou uma obsessão, entre os chamados homens de letras no Brasil. Um dos mais embuídos dessa 'missão' era o escritor e crítico literário Silvio Romero. : “No meio da agitação em que atualmente se debate a nossa pátria, não haverá provavelmente nem tempo nem lazer para se apreciarem escritos puramente literários”, escreveu(101). Particularmente ao final do século XIX, quando o Brasil passou por transformações como a abolição da escravatura, em 1888, e o fim de uma monarquia, com a proclamação da república, “[A]quele momento(…) parecia uma rara, e talvez única, oportunidade histórica de o país se pôr no nível do século, integrando-se de uma forma definida no mundo ocidental” (Saliba 296).

Nesse sentido, as questoes de gênero se assemelham muito às “raciais”. Como em outras partes do mundo, parecia de bom tom criar a imagem de uma mulher educada e esclarecida para abrilhantar as conversas de salão. No entanto, essa mulher deveria reconhecer e abraçar seu papel social de mãe e protetora dos valores de família e a eles se limitar. Qualquer tentativa de infringir essas regras era imediatamente reprimida e punida.

O fenômeno “homem de letras”

A influência desses homens de letras (escritores, poetas, jornalistas) não pode ser subestimada e sua figura, é bom lembrar, não era criação brasileira. Em artigo publicado na Harper’s Magazine, Terry Eagleton chama a atenção para o papel do “homem de letras” na literatura britânica, um ou dois séculos atrás. Para ser um genuíno homem de letras, argumenta Eagleton, não bastava escrever poemas ou romances. Era necessário lançar um periódico, arriscar-se em crítica teatral e biografia, compilar um dicionário e dar palestras públicas, entre outras atividades. Ele era uma espécie de “curinga” no terreno intelectual, pronto para escrever uma crítica sobre qualquer coisa que lhe caísse nas mãos ou a adotar as cores políticas do jornal que o estivesse empregando à época. Uma das mais importantes observações de Eagleton sobre essa figura, porém, tem a ver com a preponderância de suas opiniões na esfera social e política, uma vez que sua voz tinha considerável peso junto aos que estavam no centro das decisões políticas (Eagleton 77).

Enquanto na Inglaterra a autoridade do homem de letras tenha diminuído drasticamente no século XIX, no Brasil sua presença e influência, tardiamente iniciada em relação à Europa, iria se prolongar por mais tempo. E embora pareça irônico que os tais homens de letra tivessem influência similar à britânica num país como o Brasil, à época de maioria analfabeta, um rápido olhar sobre os registros históricos mostra que eles souberam tirar vantagem de sua situação. Numa sociedade em que o acesso à educação formal era tão limitado, os poucos detentores dos títulos de bacharel recebiam tratamento especial e suas opiniões e anseios eram reproduzidos e ecoavam no pensamento nacional e quase nunca eram questionados. Até hoje, em qualquer sociedade contemporânea, o papel dos formadores de opiniao é tema de debates.

Além do papel cívico, de caráter “civilizador” dessa categoria de homens, é preciso também observar a forma narrativa usada por eles para alcançar as mentes e corações das damas. O romance, como gênero literário, se distingue das epopéias clássicas porque privilegia a subjetividade, que por sua vez se constrói a partir dos “…embates contra os mundos de valores constituídos e dominantes” (Ribeiro 48). É interessante e produtivo pensar num cenário que de um lado apresenta escritores imbuídos de uma missão modernizante, civilizadora, de modelo cientificista e positivista; de outro, uma estrutura narrativa que abria espaço ao indivíduo, ao ser subjetivo, inexistente na epopéia clássica na qual a identidade dos heróis não inclui questionamentos existenciais (Ribeiro 47).

Assim dentro dessa relação, aparentemente simples, entre escritor e leitora oitocentista no Brasil, é possível destacar pelo menos dois paradoxos. Por um lado, esses, bem intencionados ou não, intelectuais tentavam instruir a mulher, alfabetizá-la, dentro de um esforço de criar uma nação integrada à ordem mundial eurocêntrica e até mesmo por questões pragmáticas, como, por exemplo para garantir um mercado, uma clientela consumidora de seus produtos literários. Por outro lado, dentro de sua cosmovisão era necessário controlar não só o acesso da mulher ao conhecimento, mas lhe oferecer um modelo de educação e de atitude que mantivessem intactos os valores familiares hierárquicos (Lajolo e Zilberman 256).

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As contradições e ambiguidades não param por aí. Basta pensar que enquanto o ócio das mocinhas burguesas lhes proporcionava o tempo livre necessário para a leitura dos romances, era, também, um convite a lhes instigar a fantasia e a imaginação. Assim, é verdade que as leitoras oitocentistas liam uma ficção povoada de frágeis e belas heroínas românticas, na maioria das vezes sem nenhum poder de ação e que raramente rompiam convenções e, se o faziam, eram duramente punidas por isso. Mas essas mesmas beldades viviam histórias e situações que permitiam o devaneio, convidando a uma existência fora dos limites cotidianos. A literatura, vista como formadora de opinião, é controladora, mas a leitura é qualquer coisa menos atividade passiva e se transforma em prática ideológica do imaginário coletivo (248).

O objetivo deste ensaio é contribuir com algumas reflexões para o entendimento da dinâmica e do relacionamento entre escritores e as mulheres leitoras das obras literárias no século XIX no Brasil, sobretudo dos romances. Essas reflexões buscam reforçar a necessidade de explorarmos e revermos uma série de conceitos sobre a subjetividade feminina, o feminino e o papel das mulheres num período em que suas vozes eram representadas por certos interlocutores de seus pensamentos e anseios. Quem sabe, ao questionar essas representações, estaremos resgatando um pouco da história da mulher real, que lia os livros e inspirava seus dramas, e de todas as outras mulheres que nunca puderam ler mas que também fizeram a história .

[1] José de Alencar (1829–1877) é um dos principais representantes do Romantismo no Brasil. Seu livro Iracema, de 1865, é um ícone do chamado Indianismo, uma corrente dentro da escola literária romântica no Brasil.

[2] A Moreninha foi o primeiro livro de Joaquim Manuel de Macedo (1820–1882), como Alencar considerado um escritor ligado à escola romântica.

[3] As poucas escolas para meninas restringiam-se ao curso elementar. Para ir além das primeiras letras, escolas privadas eram a única opção.

[4] O Colégio Santa Rita de Cássia oferecia um curso completo para a educação de meninas. Além de um curriculo muito mais extenso do que o usual, que incluía até mesmo aritmética, algebra e geometria, em geral disciplinas restritas aos meninos, também tinha um vasto leque de cursos opcionais, como aulas de cálculo, escrituração mercantil, línguas mortas e orientais.

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ENSAIO ORIGINALMENTE PUBLICADO EM:

Ao Redor do Mundo, Leituras em Português — Vol 1

New York: Atlantico Books, 2011.

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Selma Vital

Sou jornalista, professora e leitora apaixonada e sem método. Conheça meu projeto https://claraboiacursos.com/