Elisa, a professora

Selma Vital
12 min readNov 12, 2021
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A historinha da Elisa nasceu para um outro formato e já faz um tempo. Tive a ideia quando o Medium lançou as séries, nas quais se podia escrever e publicar os chamados 'cards', um formato perfeito para leituras rápidas ao celular, em pequenas pílulas. Recentemente, acabaram com a iniciativa, (parece que não decolou) e eu resolvi trazer a Elisa pra cá. Vou tentar manter a ideia de uma história seriada. Ficam todos convidados a acompanhar as aventuras de uma mulher comum, que não por acaso é professora.

  1. Segunda- feira Quem mandou ficar no Skype até 3 da manhã? E não foi só isso. Pra bancar a adulta, inventou de tomar todo o vinho tinto que sobrou da festa “para acompanhar a conversa” com a melhor amiga.

Hoje, enquanto a Carla dorme o sono dos justos, Elisa encara ressaca e 30 crianças (você não leu errado). Mais exatamente, 30 pré-adolescentes, já às 8 da manhã. Pesado…

Óculos escuros, você diz? Café preto, bem forte e aquele suéter verdinho lindo que faz todo mundo olhar pra blusa e não pra sua cara? Confere. Mas os olhos pesam; a cabeça flutua. Que contraditório!

A sorte é que a turma tem prova e tudo vai ser silencioso pelas duas primeiras aulas. A antecipação desse silêncio a emociona. Vontade de chorar. E, mais ainda, de dormir…

2. Elisa é professora do Fundamental 2. Ensina português e inglês em duas escolas, uma pública, da prefeitura, no bairro em que mora, e outra particular, a meia-hora de casa.

Quando não tem carona da Nati, vai de ônibus e, em dias complicados, de Uber. E depois se arrepende do gasto.

Desde que deixou de morar com a tia Lulu, as despesas aumentaram muito.

Na mesma medida aumentou a paz de espírito, com todo o respeito à tia que a acolheu na ‘cidade grande’, que nem é tão grande assim.

Agora vive num quarto e cozinha muito fofo, no quintal de um casal de idosos. A Nati é filha deles e foi ela quem arranjou tudo, incluindo o preço camarada do aluguel. A Nati é uma boa amiga…

3. Amizades assim no plural ela não tem. Quer dizer, duas amigas já valem o plural. Ela é professora de português e de plural entende. O Paulinho é amigo também e virou colega, quando decidiu ser professor.

Saíram da cidadezinha natal na mesma época, com diferença de meses. Ela já tinha terminado a faculdade e dava aula particular de inglês.

Ele demorou um pouco mais até se formar. Mas passou em concurso e começou a lecionar muito rápido; ensina química e biologia.

Um pouco nerd, super gente boa, conversavam sobre os conhecidos, sobre o trabalho e assistem Harry Potter juntos, uma paixão comum.

3. Outras paixões incluem ensinar, é claro, e livros. Dois temas que parecem afastar os potenciais namorados. Por outro lado, quando namorou o Thy, que é professor e rato de biblioteca, tudo desandou…O que teria acontecido?

Ela se lamenta um pouco por isso, quando tem tempo pra pensar mais seriamente no que rolou. A vida da Elisa é corrida.

A escola acaba sendo muito a sua casa. Embora ela esteja tentando separar mais as coisas, como se fossem dois mundos: o cantinho dela no quintal do seu Nelson e dona Leonor e as escolas onde ela trabalha.

E há ainda uma paixão importante: viajar. Apesar de viajar bem menos do que gostaria…

Ah, se o mundo não fosse tão grande.

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4. O mundo com o qual Elisa sonhava era imenso. Muito desse mundo vinha dos livros. Outro tanto ela imaginava desde antes dos livros.

Ela queria fazer seus alunos sonharem também. Entre a ortografia, a pontuação, as tarefas e provas…

Um dia pediu para que todos os alunos do 7o. ano da escola pública escrevessem em papeizinhos um grande sonho que tinham.

Guardou tudo para ler sozinha em casa, de noite. Alguns sonhos eram engraçados. A Maíra, uma menina mirradinha, menor do que todas das duas turmas, disse que sonhava crescer 5 cm. Por que será que ela queria exatamente cinco centímetros?

Larissa, a menina mais CDF do 7o.B, sonhava ir a Disney. E pelo menos outras 20 crianças queriam também!

5. Nem todo sonho é igual. Francisco sonhava que a mãe se curasse. Não disse do que…

Fabiana sonhava ter uma casa em que pudesse viver só com a mãe e os irmãos. E Wandinho sonhava voltar para a Bahia, onde morava sua avó querida e seus melhores amigos…

No fim da noite, lendo tantos outros sonhos que pareciam coisas que toda criança deveria ter, Elisa ficou meio deprimida e se perguntando o que fazer com esses sonhos.

Dormiu e sonhou que ela era uma espécie de fada madrinha que tinha o poder de realizar os sonhos de pelo menos 15 crianças!

Acordou aflita porque não sabia como escolher.

Chorou de angústia quando lembrou que não tinha super poderes.

6. Longe da escola, a vida de Elisa era normal, ou quase. A cada dois finais de semana visitava a tia Lulu. Levava bombas de chocolate da padaria vizinha para a tia e os dois primos adolescentes.

A conversa com a tia parecia arrastada. Falavam de banalidades. No fundo, Elisa tinha pena dela.Cuidava sozinha dos dois filhos, que eram meninos bem “difíceis”.

Elisa ouvia as reclamações da tia e tentava não falar de seus próprios problemas. Algumas vezes voltava pra casa sem energias, prometendo que iria se afastar por uns tempos.

Mas se ficava sem aparecer a tia mandava recados ressentidos e o ciclo recomeçava.

Até que em uma das visitas algo aconteceu. Serena, a gata gorda, teve cinco gatinhos amarelos! E pintou ele: Sole!

7. Elisa não era do tipo que curtia gatos. Os bichanos, apesar de charmosos, tinham para ela uma arrogância indisfarçável. As coisas começaram a mudar depois que todos os gatinhos foram adotados, exceto o mais alaranjado deles.

Magrelinho, todo dengoso, até hoje Elisa pensa que foi justamente a pose de carente que a conquistou. Freud talvez explique…

Quando a tia veio com a ideia, ela rejeitou imediatamente. Sabe-se lá se os donos de sua casinha permitiam gatos!

Só para confirmar, perguntou no dia seguinte e recebeu sinal verde para que o pequeno sol entrasse em sua casa e desse uma iluminada geral.

8. Sole era Sun. A cor da pelagem exigia um nome do tipo e, como professora de inglês, Sun parecia a escolha mais óbvia.

O italiano acabou ganhando a parada porque na época Elisa estava apaixonada pela leitura da série napolitana de Elena Ferrante.

Assim Sole também ficaria associado aos livros do período. Na infância, o cãozinho da família se chamava Marmelo por conta de um livro da Ruth Rocha que ela lia.

As amigas mais chegadas diziam que agora ela se declarava oficialmente a “moça dos gatos”, com todos os estereótipos associados, e ainda por cima professora!

O fato é que por meses entre correção de provas, trabalhos e preparação de aulas, Sole ocupava o tempo e o dinheiro que restavam : caminha, comida, brinquedos, veterinária…

9. A casinha dos fundos era boa, mas bem fria quando chegava o inverno. Sole se enrolava em seus pés nas longas noites em que ela corrigia provas. O ronronar e o calor do gatinho que agora ficava rechonchudo tornavam a tarefa menos árdua.

Às vezes pensava que essas avaliações avaliavam as coisas menos importantes. Ao mesmo tempo se sentia tão impotente para mudar isso. As provas eram decididas pela escola; sua opinião contava pouco.

Será que valia a pena insistir que algo deveria mudar? Se dava preguiça pensar, dava raiva imaginar que tinha de aceitar tudo calada. E será que tinha?

Desde pequena, Elisa podia se perder em seus próprios pensamentos por horas a fio.

10. Carla dizia que Elisa precisava ter um namorado, um amante, alguém para tirá-la um pouco dos pensamentos insistentes e que raramente levavam a algo.

Elisa hesitava em concordar ao ver que Carla, com um namorado novo a cada mês, parecia sempre tão solitária.

O concurso anual de historinhas iria começar na escola particular. Há anos Elisa queria implantar algo assim na escola pública e ainda não tinha conseguido.

Nas épocas do concurso passava muito tempo na escola, bem além do seu horário. E levava coisas pra fazer em casa também. Reclamava muito mas no fundo adorava esse período.

Ela quase podia ouvir Carla dizendo que ela estava transferindo a carência pessoal para a escola. Fosse isso ou não, Elisa curtia demais o concurso!

11. O Concurso… Quando pensou no concurso, levou a ideia à coordenadora do Fundamental 2 da escola particular e foi tão bem recebida que chegou a desconfiar…O primeiro ano foi difícil, porque nem elas sabiam muito bem como proceder.

Mas tudo correu bem. Todos os alunos do sexto ao nono anos poderiam enviar uma historinha de no máximo 1000 caracteres.

Um acordo com a livraria do bairro garantiu livros como prêmios aos três primeiros lugares e uma loja, cuja dona tinha filhos na escola, ofereceu uma mochila maneiríssima à ganhadora.

Nos anos seguintes, com a adesão de vários colegas e outros apoiadores externos, expandiram o concurso para história em quadrinhos, tirinhas e até para pequenos contos em inglês!

Na última edição do evento, a direção levou uma escritora para fazer parte do júri e a escola sediou uma noite de autógrafos para ela e outros dois jovens talentos, um autor de uma novela gráfica e uma poeta.

12. Elisa sabia que o sucesso dos concursos dependia muito do apoio da direção, da coordenadora pedagógica e dos colegas.

Os alunos, mesmo os que não participavam com histórias, começaram a ser envolvidos na preparação do evento, de forma que ao final todo mundo se sentisse um pouco responsável pelo (bom) trabalho.

Depois de três dias lindos no concurso, era impossível não querer fazer uma versão do evento na escola pública. Lá, porém, Elisa sentia que seu poder dentro da escola era menor.

Era preciso juntar forças, convencer colegas — sobrecarregados e nada entusiasmados com a ideia de mais uma tarefa — , de que os resultados e o engajamento dos alunos valiam muito o esforço. Por onde começar?

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13. Era uma terça-feira de abril, o primeiro dia de sol depois de uma semana de muita chuva. Sole, o gato, se banhava sob os raios de sol que entravam pela janela do quarto, quando Elisa recebeu uma mensagem de Ana Rosa, a colega professora de português do oitavo ano, da escola pública.

A colega se desculpava por não ter ido à final do concurso na outra escola de Elisa.

Quando a convidou, a tática de Elisa era mostrar ao invés de falar. Talvez sentindo a vibração e o envolvimento da escola inteira, Ana Rosa se animasse a juntar forças para promover um evento parecido na pequena escola municipal em que trabalhavam.

Como a colega não apareceu, Elisa já se sentia parcialmente derrotada.

O recadinho logo de manhã, no entanto, parecia sincero. A filhinha de Ana Rosa tinha estado febril naquele fim de semana, mas, sim, ela gostaria de saber mais sobre o projeto.

Sole se espreguiçava enquanto Elisa vislumbrava um pequeno sinal de que o projeto concurso poderia, quem sabe, se materializar. O gato amarelo voltou a dormir depois de um longo e sistemático banho de lambidas.

14. A outra mensagem da manhã era mais pessoal. Paulinho também se desculpava por ter faltado ao concurso. Ele era um tremendo fã do projeto e apesar de não ser dado a todo tipo de leitura, além claro de Harry Potter, incentivava muito a iniciativa e ajudava como podia.

A mensagem, porém, tinha outra intenção. “Lembra do Cacau, filho da professora de piano?”

A cidadezinha onde eles cresceram tinha mais do que uma professora de piano, mas Elisa sabia exatamente de quem ele falava. Especialmente de que filho ele falava.

Pois Cacau estava visitando Paulinho e queriam incluir Elisa numa balada no dia seguinte para recordarem “os velhos tempos”.

O amigo sabia como eram raras as saídas de Elisa durante a semana, mas fazia tantos anos que não via o Cacau que julgou ser uma ocasião especial.

E acertou…

15. Cacau… impossível esquecer que toda menina (e menino) da geração de Elisa, em sua pequena cidade, necessariamente se apaixonava por ele.

Olhos meio esverdeados, a pele escura, inacreditavelmente sempre bronzeada e o tom de voz mais aveludado que seus ouvidos jamais experimentaram, antes ou depois.

Ela admitia que também tinha, em algum momento, sonhado se aproximar dele. E nesse dia ele riria das suas piadas, elogiaria suas ideias malucas e iria patinar com ela no novo ringue que fazia o maior sucesso no tempo do ensino médio.

Mesmo sabendo que tudo isso era puro devaneio, difícil não sentir uma certa ansiedade. A curiosidade, no entanto, venceu a insegurança costumeira.

Ela queria revê-lo. Nem que fosse para saber o que teria acontecido ao menino mais desejado dos seus tempos de escola.

16. Ela chegou propositadamente um pouco atrasada. Não queria transparecer ansiedade. Afinal, agora, ela era adulta, professora, morava sozinha.

Estava intrigada. Por que ele tinha procurado justamente o Paulinho? Ela não se lembra de eles serem amigos.

Será que Cacau era gay? Bem, ela nāo sabia se Paulinho era gay. Apesar da amizade, do tempo que passavam juntos, este sempre foi um tema delicado entre eles.

Paulinho e Cacau estavam numa mesa de canto, mas não estavam sós. Havia uma moça negra de longos dreadlocks e uma menina de uns 5 anos. Nem era preciso perguntar. A criança tinha o mesmo rostinho que ela se lembrava do Cacau.

As apresentaçoes foram feitas e Elisa se sentiu meio boba. Tinha perdido um tempão se maquiando como nunca faz, escolhendo a roupa mais adequada…para descobrir que Cacau, príncipe do ensino médio, já tinha sua princesa, uma mulher linda e inteligente e os dois tinham uma filhinha adorável.

A noite foi agradável, mesmo assim Elisa voltou pra casa com um sentimento estranho no peito.

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17. Ainda se refazendo de algo que ela nem sabia o que era, no dia seguinte Elisa percebeu que Sole estava doente. Percebeu também o quanto sua felicidade agora estava diretamente ligada ao bem estar de seu gato.

Seria isso normal?

Na adolescência tudo que ela buscava era ser normal. Em alguns meses ela faria 28 anos e, segundo Nati, iniciaria um novo ciclo (que a Nati dividia em sete anos cada). Sete. Será que o Sole tinha sete vidas? O livro de inglês dizia que os gatos têm nove e não sete vidas.

Por que toda vez que estava perdida a mente resolvia vagar por esses pensamentos sem pé nem cabeça?

A recepcionista finalmente chamou seu nome. E então Elisa lembrou-se que estava na recepção da veterinária, e que Sole ainda dormia, inerte, em seu colo.

18. Sete ou nove vidas? Elisa não queria confirmar quantas vidas tem um gato, mas depois de sete longos dias e noites, Sole voltou ao normal.

Ela e Paulinho passaram quase uma hora ao telefone falando finalmente de Cacau e, de alguma forma, de suas próprias vidas.

Paulinho confessou que estava saindo com um colega da academia, o Marcelo, e Elisa agiu como se sempre soubesse que ele era gay.

Os dois à sua própria maneira refletiram sobre suas vidas. Quando desligaram Elisa ponderou que ela era uma professora sem grandes perspectivas profissionais, morando com seu gato num cômodo e cozinha alugados no fundo de um casal de aposentados, sem namorado ou amante, e cujo amigo mais próximo, com quem ela passava longas tardes vendo filmes velhos, era gay. E agora talvez nem isso, pois Marcelo com toda certeza seria a prioridade do Paulinho.

19. As férias de julho se aproximavam. O plano era viajar por uma semana com Carla, que estava em período sem namorado.

Foram a Ouro Preto e a maior parte do tempo Carla reclamava das ladeiras que tinham de subir e se arrependia de não terem ido a um lugar com praia…

Depois Elisa passou uns poucos dias com os pais, em sua pequena cidade. Seu quarto antigo agora era parte quarto de costuras da mãe.

Em sua cidadela reveria colegas que nunca deixaram o estilo de vida provinciano que tanto assustava Elisa. Algumas, casadas e com bebês, já pareciam matronas. Algumas pareciam mesmo felizes.

Os homens também seguiam o que se esperava deles. Roberto, irmão mais velho de Paulinho, teria um casamento com festa e Elisa se perguntava se Paulinho levaria Marcelo.

20. O casamento foi num sítio de cerca branquinha, com muitas flores e nem o friozinho de meados de julho atrapalhou a festa.

Paulinho decidiu que ainda era cedo para submeter Marcelo ao crivo de uma família (e uma cidade) tão prolífica em preconceitos. Foi sozinho.

Elisa e Paulinho passaram boa parte da festa eles próprios ‘julgando’ os antigos vizinhos e Elisa decidiu se esconder quando a noiva finalmente jogou o buquê, para grande tristeza de sua mãe.

No fim da festa, com todo mundo um pouco bêbado, Elisa ficou com Tavito, um antigo colega metido a surfista, que para confirmar o estereótipo tinha péssimo português.

Acabou voltando para seu gato e sua casinha antes do esperado. Prenúncio de crise, perfeitamente alinhada a suas reuniões de planejamento de volta às aulas…

Elisa, a professora — parte 2

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Selma Vital

Sou jornalista, professora e leitora apaixonada e sem método. Conheça meu projeto https://claraboiacursos.com/