Dos perigos de ser mulher

Selma Vital
4 min readMar 26, 2023

Escrevi este textinho como post do Facebook, já tem um tempinho. É algo muito íntimo e ao mesmo tempo não é, porque ainda que de outras formas as agressões continuam por aí, décadas depois. Não tem moral da história, é só um relato real e terrivelmente cotidiano.

Foto: Joaquín M (Pexels)

Foi em agosto de 1990. Talvez muitas das moças que hoje me enchem de orgulho ao levar adiante a chamada #primavera feminista no Brasil nem tivessem nascido. O fato triste é que bem antes dos 90, e até este exato momento, para mim e milhares de mulheres Brasil afora, a vida em sociedade é um desafio constante.

Pois bem, era 1990 , mais de 11 da noite, num domingo frio. Eu voltava do trabalho. Trabalhava como revisora de um jornal de São Paulo e tinha turnos todo final de semana. Nos dias de semana saía do trabalho à 1 da manhã, mas aos domingos podia ir pra casa mais cedo.

Fazia pouco tempo eu tinha comprado um carro velhinho, mas tinha pouca prática em dirigir e, mesmo que tivesse, não compensava ir de carro para o jornal, por vários motivos. Naquele domingo, em especial, decidi ir de carro até o metrô, que fica a poucas quadras da casa dos meus pais. Pensava em justamente não ter de subir a rua sozinha na volta, àquela hora da noite.

Saí do metrô e quando abria a porta do meu carro, que estava parado numa rua próxima, vi um cara jovem descendo a rua. Era só ele e eu. Ele usava uma jaqueta azul, que parecia cara, era branco e tinha cabelo encaracolado. Eu não o conhecia, então fui rápido para o carro e enquanto abria a porta, ele se aproximou e passou a mão na minha bunda.

Era tarde e eu estava sozinha mas sem pensar em nada mandei ele passar a mão na bunda da mãe dele (pobre senhora!). Irritada, com o coração a mil, joguei tudo que tinha nas mãos dentro do carro e notei que a chave tinha ido junto. A luz interna do carro não funcionava e eu não conseguia encontrar as chaves. Quando levantei a cabeça do chão, ainda à procura das chaves, vi que o cara tinha voltado, agora com uma ripa de madeira. Total cena de filme de terror.

Ele começou a bater nos vidros do carro. Eu gritei tudo o que pude, mas estava dentro do carro. Estupidamente, resolvi sair do carro e correr, com medo que ele conseguisse quebrar os vidros. Não parei de gritar e pedir ajuda um só minuto. Ninguém, absolutamente ninguém apareceu.

Ele me alcançou por que caí ( ou por que não sou boa corredora) e então ele começou a me bater. Quando uma pancada me acertou perto do olho decidi ficar de cara para o chão e me enrolar feito um tatu-bola. Como estava frio e eu tinha muita roupa, fui poupada de um estrago maior. Ele tomou minha bolsa e saiu correndo.

Só então, virei o rosto do chão e encontrei vários outros rostos me observando. Onde estavam todos? Por que só agora apareciam? Uma pessoa que morava praticamente em frente ao lugar onde deixei o carro, disse que ouviu meus gritos mas pensou que era briga de namorados… Acho que isso me chocou mais do que a falta de socorro.

Consegui chegar em casa e com meus pais fomos à delegacia mais próxima fazer a ocorrência. Esperamos um pouco e finalmente um investigador que entrou na DP pouco depois de nós me mandou entrar numa sala e proibiu meus pais de entrarem comigo.

Eu achava que era protocolo, um certo código de privacidade, mas na verdade era porque ele iria me passar uma cantada. Meu olho direito estava roxo, eu ainda tremia, e mesmo assim o policial que deveria me ajudar deixou meus pais fora da cena porque, como ele disse sem nenhum pudor ao colega, na minha frente, assim que viu nosso carro parado em frente à delegacia sabia que “era gatinha”.

Parecia surreal. Tive certeza que aquele jovem policial, indiferente ao medo, à raiva e à dor que eu estava sentindo, achava que eu estava gostando da cantada e que deveria me sentir lisonjeada. Pela segunda vez naquela noite, eu queria mandar esse cara ir cantar a mãe dele. Dessa vez me contive, vencida, dolorida...

Ele e o colega me disseram que não podiam registrar a agressão física no B.O. Para isso eu teria de fazer um exame de corpo delito. As marcas do meu rosto não eram suficientes. Eu disse que estava disposta a fazê-lo, porque segundo eles se eu não o fizesse e o rapaz fosse preso, ele seria acusado somente de roubo. Eles insistiram que o exame era um pouco humilhante e criaram várias dificuldades. Eu assinei os papeis e nunca fui fazer o exame. O agressor, ao que eu saiba, jamais foi preso.

O médico me afastou do trabalho por uma semana e nesse tempo os sinais da agressão no meu rosto cicatrizaram. Minha bolsa foi jogada num quintal , próximo ao local do assalto, e os donos da casa entraram em contato comigo. Meus documentos estavam intactos. Além da carteira ele levou as fotos que eu carregava comigo, de familiares e amigos.

Nos dias seguintes à agressão, eu pensava ver o cara em todo lugar. E respondi inúmeras vezes a perguntas muito parecidas: Por que você saiu do carro? Por que você não soltou o freio de mão do carro? Mas principalmente: Por que você reagiu quando ele passou a mão em você? Eu mesma me perguntei isso depois de ouvir o questionamento tantas vezes. Era tarde da noite de um domingo e não havia ninguém na rua de um bairro periférico.

Sabe de uma coisa? Hoje, tantos anos depois, acho que teria feito a mesma coisa.

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Selma Vital

Sou jornalista, professora e leitora apaixonada e sem método. Conheça meu projeto https://claraboiacursos.com/