Chorinho de quarentena

Selma Vital
3 min readApr 8, 2020
Photo by Aлександар Габона

A mãe chega em casa e encontra a filha cortando cebolas e chorando muito. Conta a menina que começou a chorar por causa da cebola mas aproveitou o ensejo e acabou chorando por tudo o que precisava, metódica e catarticamente: um desses paradoxos.

Lembrei dessa história hoje vendo o discurso (emocionante) de saída da campanha de Bernie Sanders, que pleiteava candidatura à presidência dos Estados Unidos, pelo Partido Democrata.

Comecei chorando de tristeza por ver possivelmente o melhor candidato da história daquele país saindo da disputa. Chorei por que pela idade dele esta era sua última chance de se tornar presidente. E sei que chorei também por recordar a armação descarada que o tirou da contenda em 2016 e pelos esquemas de poder ainda prevalentes que derrotaram uma caminhada única, com verbas vindas de gente comum, que vislumbrava em sua plataforma uma sociedade mais justa, um sonho que se podia alcançar.

Só que, em plena quarentena, muito consciente de que se há um sociopata no mais alto cargo executivo dos EUA neste momento, reconheço que há um de mesma estirpe no Brasil, causando estragos terríveis à campanha de prevenção do colapso do sistema médico.

Enquanto a Organização Mundial de Saúde e as principais nações do mundo adotam medidas extremas para proteger suas populações, o presidente do Brasil (num misto de deprezo e ódio) sai na contramão, divulga falsos remédios, prega o fim do isolamento social, zomba da fragilidade de certos grupos de risco e tudo isso durante uma pandemia como não se via há mais de um século.

Na conta das lágrimas não cabem só as grandes questões de poder. Entram também as coisas miúdas: o medo cotidiano, desentendimentos de toda ordem, até entre amigos queridos, que a crise geral, política e social, torna mais comuns (e ainda mais doloridos); o acúmulo de incertezas, as insônias, e a dificuldade de se fixar o olhar numa linha do horizonte, quando o chão parece tremer.

Se tem um lado bom nesse pranto de quarentena (acho que isso rende nome de bolero!) é que num período em que não se deve abraçar, não se pode ter visita em casa, é proibido papear com as amigas nos cafés e celebrar a vida em grandes encontros, precisamos mais do que nunca estar em contato com nossa própria humanidade.

É urgente nos sentirmos humanos seja fazendo a playlist do momento, seja trapaceando a dor com doses alopáticas de Netflix ou, sempre que possível, saboreando lentamente uma taça de um bom tinto. E chorar, quem pode negar, entra aí nessas tentativas meio desajeitadas de alcançar o que de humano preservamos, com carinho, constrangimento ou de forma desleixada.

Então, se precisar, vá cortar umas cebolas… Amanhã, já disse o Chico, vai ser outro dia.

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Selma Vital

Sou jornalista, professora e leitora apaixonada e sem método. Conheça meu projeto https://claraboiacursos.com/